Melhor é o homem paciente do que o guerreiro, mais vale controlar o seu espírito do que conquistar uma cidade. (Provérbios, 16:32)
Preciso atravessar o Rio da Prata. Perdemos um grande.
A edição de 14 de maio de Estadão, Valor, Folha de S.Paulo e Zero Hora coincidiram em qualificar José "Pepe" Mujica como "símbolo". Podia ser ícone, referência ou outros sinônimos de carga semânticas variadas. Houve, no entanto, um raro alinhamento entre os capistas, o rascunho da história veio em tom lapidar.
Raro evento a uma rara figura. Sou despido de fanatismo, não sou fã de coisa alguma, tolero fila só no supermercado, não passa por mim as ganas de pegar autógrafo de celebridade, tirar selfie ou essas fervorosas manifestações de fé – não julgo pois também me reservo o direito de não ser julgado pelas minhas idiotissincrasias. Na política então, puxa vida, simpatizo com poucos, precisaria fazer um esforço para lembrar de algum nome, algum nome que não fosse Pepe.
Por mim ele poderia ser o presidente do mundo, brincava – mas se possível fosse, sim, já, claro. Provavelmente ele responderia com um no, no, sos loco.
A humildade material monástica deveria servir de baliza aos que se dedicam à vida pública. Só que de tão rara soa como exceção, gera gracejos, como o apelido de "presidente mais pobre do mundo". A resposta de Mujica?
Pessoas pobres são aquelas que sempre precisam de mais, aqueles que nunca têm o suficiente, porque estão num ciclo infinito. Escolhi esse estilo de vida austero, escolhi não ter muitas coisas, para que eu tenha tempo de viver como quero viver. Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo apenas com o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.
Vai lá varrer seu sarcasmo espatifado.
Na hora do vamo vê, enquanto Presidente, o ex-guerrilheiro tupamaro não só manteve a coerência como levou adiante três projetos controversos:
Legalização do uso da maconha;
Descriminalização do aborto ;
Regulamentação da união civil de pessoas do mesmo sexo.
No futuro, seremos vistos como bárbaros. Apenas as sociedades que tiveram Mujicas como líderes se salvarão do constrangimento de não ter esses três assuntos definitivamente resolvidos à Pepe.
No Brasil ocorre um fenômeno lamentável. Basta um político com essas convicções ganhar uma eleição para começar com "veja bem". O obrigatório banho de loja do marketing eleitoral custa um programa de governo anódino.
Mujica chamava Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, de "ditador da Venezuela". Fácil? Para algumas lideranças não parece.
Para efeito de argumento, digamos que os tópicos até aqui mencionados sejam desimportantes, pois o povo passa fome. No Valor Econômico:
Economicamente, durante seu mandato, a taxa de desemprego caiu de 13% para 7%, o índice de pobreza recuou de 40% para 11% e o salário mínimo real aumentou entre 3% e 4% a cada ano. [grifo meu]
O Uruguai cresceu em média 5,4% ao ano durante o mandato de Mujica. Tipo o nosso milagre econômico, só que sem ditadora, muito pelo contrário. E olha que Pepe acreditava que "é hora de o crescimento econômico não ser o único parâmetro com que medimos a vida humana. É preciso começar a pensar em paradigmas que tenham a ver com a felicidade do homem."
Esse camarada subiu o sarrafo da política americana. É possível sonhar, vide Pepe.