"(...) Eu acho que é local de disputa a autoria das novelas da Globo, das séries da Netflix. Todos esses lugares são onde se produz e eterniza uma narrativa —narrativa leva a imaginário, imaginário leva a construção de sociedades. Esses lugares sempre têm que estar em disputa, não tenho a menor dúvida disso"
- Ana Maria Gonçalves, em entrevista a Walter Porto.
Esqueça a narração tortuosa de Selton Mello em O Mecanismo. Equivale a apontar que a bateria do álbum St. Anger do Metallica parece um botijão de gás, passou.
Tenho a sensação de que os envolvidos com a série O Mecanismo, uma espécie de biopic da Lava Jato bancada pela Netflix, se arrependeram do trabalho. Penso nisso com base no cavalo de pau que a série deu da primeira para a segunda temporada.
A primeira temporada estreou em 23 de março de 2018.
QUINZE DIAS DEPOIS, 7 de abril de 2018, Lula é preso.
Como se já não bastasse o tumulto político, vem uma série policial para amaldiçoar meu nosso cérebro e botar lenha na fogueira.
A segunda temporada chega em 10 de maio de 2019 – portanto, menos de um ano após o anúncio de renovação da atração. Considerando que são oito episódios de mais de 40 minutos de alta produção no marco do cinema nacional, foi uma produção rápida e com uma missão ingrata, meter o bedelho na vida pública do país.
TRINTA DIAS DEPOIS da estreia da segunda temporada de O Mecanismo, o Intercept publica chats privados sobre a Lava Jato envolvendo o juiz Sergio Moro, no que veio a ser conhecido como Vaza Jato. A pá de cal na credibilidade dos envolvidos na Lava Jato, a matéria-prima do programa.
Mesmo pré-Vaza, a série passou a ser veja bem, nuances na segunda temporada, tirou o pé do lado político.
José Padilha, um dos diretores de O Mecanismo, deu guinada similar na continuação de Tropa de Elite. No filme, porém, soa como complemento, uma instância acima para complexificar o mundo do policial Nascimento. Na mão de uma produtora comum, Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro teria mais sangue, mais tiros, mais explosões, mais, mais, mais – Padilha não é diretor de John Wick, ufa.
Não desejo oito anos de prisão dos envolvidos com O Mecanismo, até porque há gente demais encarcerada no Brasil, mas houve algo de shock humour na série. Ao menos, foi o que me motivou a ver, saber até onde iria, como e o que retrataria. Meu interesse era político.
Entendo que é obra de ficção, a ser criada e narrada da forma que fosse – por mim poderia até dar os nomes reais, Janete = Dilma, Higino = Lula, vamos embora. Agora, foi uma empresa de mídia colocando o bedelho* em assunto que não é de sua alçada.
Para a felicidade geral da nação, o refluxo da atenção dispersiva fez com que O Mecanismo sumisse do imaginário popular feito o preparo de um miojo. O hype escorre pelo ralo, só os doideiras lembram dos sussurros duros de Selton Mello.
Foi um teste da Netflix? Passamos? Terão coragem de fazer algo similar da administração Trump? O material é suculento, tem até juras de amor desembocando em ódio.
PS: Sem au-au nem doguinho, falamos do mundo cão
Com a voz do Selton Mello na cabeça
Fui repórter de segurança pública, vulgo repórter de polícia. É o alicerce do chamado mundo cão [não que cachorrinhos tenham qualquer culpa nessa história]. Bem sei, estatísticas, análises e discussões estruturais não contam com o mesmo apelo de um cadáver. É o momento da bifurcação entre interesse público e interesse do público.