A queda da internet: utopia e repressão
Diante da regulação, o jogo das big techs fica escancarado
Saiu o e-mail com o texto da semana passada: não tem volta. De imediato, senti o arrepio do devia ter dito. Segura a minha mão, talvez seja o mais importante dessa conversa.
Quando há uma lei no caminho da empresa de tecnologia, às favas com as sutilezas, o cliente vira cassetete.
O Uber fez o caminho do Google, adotou a tática do suborno suave. Em princípio, motoristas ganhavam bem, passageiros pagavam pouco e recebiam doces, água e condutores abrindo a porta do carro.
A mordomia estourou na prefeitura de São Paulo, pois o Uber era um serviço ilegal. A prefeitura passou o recibo, aprovou a regulamentação rapidinho. Taxistas tiveram as licenças (portanto, seu patrimônio) desvalorizadas de súbito. Alguém parou para pensar na relação de trabalho entre Uber e motoristas? Mais pessoas usando transporte individual do que coletivo é uma medonha consequência.
A tática volta agora para forçar ônibus fretados e mototáxi na cidade, com direito a anúncio de página inteira e patrocínio de seminário na Folha de S.Paulo, com participação de chefia do Uber e primeiro escalão do governo municipal.
Costumes, ética e leis são sujeitos a mudanças, a política se dá no movimento das regras do jogo. As empresas de tecnologia patrolam essa evolução. Lembra da campanha do Google contra o projeto de lei das Fake News? Sucesso, foi arquivado. A despeito do mérito da proposição, salta aos olhos a virulência da reação.
O Executivo recorda a derrota, prepara projetos para regular as plataformas digitais. Chamou as tecs para conversar.
— Não dá, tenho um compromisso — disseram as tecs, que, no entanto, acharam um espaço na agenda para ir ao seminário do PL, partido de oposição.
Ah, e o governo negou retaliar a taxação americana do aço com imposto às plataformas digitais… e isso que ninguém tinha pensado nisso.
Estamos lascados? Há esperanças. Uma delas é a Free Our Feeds, uma proposta de rede social livre de bilionários. O projeto usa tecnologia da Bluesky, fundada pelo ex-Twitter Jack Dorsey. Torço que ele almeje um legado diferente do hoje chamado X.
Entre os envolvidos na Free Our Feeds está Jimmy Wales, criador da Wikipédia, a última utopia da web: autoria coletiva, sem login, sem publicidade. Tão livre que hoje a Wikipédia alimenta as ferramentas de inteligência artificial — melancólica ironia.
Os casos listados de tensão tecnológica e social são alguns de um sem número – nem mencionei Amazon e livros, perceba. Discorrer sobre o assunto pode indicar uma malvadeza pura das big techs. Sim… mas não, não só. Sempre há a atuação dos usuários — mencionei isso nos textos anteriores. Eles querem o que você quer para se manter ali dentro e sim, você quer. O algoritmo não age sozinho.
A transformação digital é, sobretudo, uma disputa de poder, com a balança pendendo para o lado do Vale do Silício. As big techs modelam cenários e decisões, o espaço público se transforma num campo cuja atitude dos usuários é essencial.
Leia o texto da semana passada
A queda da internet: o fim do leitor
Atribuir somente ao Adwords a derrocada da internet seria leviano. O Google, por outro lado…